Entrevista do Representante Especial, Sr. José Ramos-Horta com o “Global Observatory”

27 mai 2013

Entrevista do Representante Especial, Sr. José Ramos-Horta com o “Global Observatory”

27 de Maio de 2013 - O Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas (RESG) para a Guiné-Bissau, José Ramos-Horta, foi, a 23 de maio de 2013, o convidado do "Global Observatory", publicado pelo International Peace Institute (IPI). Foi entrevistado por Warren Hoge, Conselhero principal do IPI.

Warren Hoge: José, seja bem vindo. Gostaria de preguntar, primeiro, sobre os objetivos imediatos da missão ou do país. Sei que existe um plano para realizar eleições . Quando serão as eleições ? Existe um roteiro para esse fim, bem como para consolidar as coisas, uma vez realizadas as eleiões ?

José Ramos-Horta: As eleições serão realizadas no final de novembro deste ano, e este período de transição terá então terminado, seguido de uma segunda fase do engajamento internacional, que será essencialmente para apoiar de forma pro-ativa a reconstrução das instituições do Estado.
Foram necessários afincados esforços por parte de todos nós, não só eu, mas particularmente esforços dos líderes políticos, do Presidente de transição, do Primeiro-Ministro de transição, da Assembleia Nacional, dos partidos políticos, engajados no diálogo para conceber um roteiro até as eleições em novembro. Não tem sido fácil, mas nada é fácil em qualquer lugar, quando temos tantos partidos políticos, diferenças de opinião, de ambições, etc. A situação permanece globalmente calma, embora [com] muita tensão. A pobreza é generalizada, profundamente enraizada, a desnutrição infantil e os problemas de saúde são grandes. As agências das Nações Unidas aqui, do UNICEF ao Programa Alimentar Mundial (PAM), deparam com recursos muito limitados, tentando ajudar no máximo possível.

WH: José, o país recebe assistência da sua região imediata? As organizações, como a UA e a CEDEAO estão a ajudar ativamente a restaurar a Guiné-Bissau?

JRH: Eu gostaria de louvar a CEDEAO, organização regional oeste africana, pela sua liderança ativa, não obstante os vários desafios enfrentados nos seus próprios países de origem; alguns deles, apesar de recursos limitados. Deveria ser deles o crédito por terem agido rapidamente após o golpe, evitando que o país se mergulhasse numa anarquia. Eles impuseram aos líderes políticos do país esta transição que ainda permanece; impediram a dissolução da Constituição e da Assembleia Nacional; disponibilizaram ainda milhões de dólares em dinheiro para pagar os funcionários públicos, o exército, etc. Mas, também, a comunidade internacional, a União Europeia e outros doadores bilaterais, apesar de terem imposto sanções ao governo - suspenderam, por exemplo, alguns programas de financiamento direto do governo - mas não suspenderam a assistência humanitária. E isso impediu que a Guiné-Bissau se tornasse numa catástrophe humanitária, num completo cao político. Portanto, neste momento, temos uma boa parceria, entre as Nações Unidas, União Europeia, União Africana, CEDEAO, Comunidade de Países da Língua Oficial Portuguesa; as agências da ONU, apoiando de várias maneiras, dentro dos limites dos respetivos orçamentos, para prevenir uma catástrophe humanitária e pôr a Guiné-Bissau de volta no processo, em termos de restauração da ordem constitucional.

WH: Eu mencionei no início, que a Guiné-Bissau é conhecida como um lugar de tráfico internacional de drogas. Tem um litoral que é utilizado por traficantes, incluindo as cerca de 80 ilhas onde aviões podem aterrar e descolar transportando drogas para a Europa e voltar para os Estados Unidos. Existe um plano para tentar erradicar o tráfico de drogas, e será que esse plano envolve a substituição das drogas por outra coisa que possa criar uma economia para o povo da Guiné-Bissau?

JRH: Em primeiro lugar, como sabemos, as drogas provêm da América Latina, principalmente, e também de outros lugares do mundo, e daqui vai particularmente para a Europa. A Guiné-Bissau, como a maioria dos Estados Oeste Africanos, [é] essencialmente uma rota de trânsito para o tráfico de drogas. Há obviamente um sério problema de drogas aqui, muitas pessoas estão envolvidas, em diferentes níveis da política, do governo, do exército. Mas eu ainda tenho dificuldades em aceitar o rótulo de "narco-estado." Se a Guiné-Bissau e um narco-estado, eu poderia dizer que existem alguns outros países que mais se encaixam nessa descrição. Mas independentemente de saber se é realmente um narco-estado ou não, é importante que a comunidade internacional, especialmente os europeus e os Estados Unidos, se eles acreditam que a Guiné-Bissau apresenta uma séria ameaça, por ser um narco-estado, deveriam voltar a engajar-se imediatamente, prestando assistência ao país, evitando que os cartéis da drogas da América Latina façam uso de um pobre país tão frágil.

Eu defendi isso em Washington, Nova Iorque e em Paris. E estou confiante que vamos ver renovada a assistência financeira e técnica à Guiné-Bissau, trabalhando com as autoridades aqui para melhorar a vigilância marítima, o sistema judiciário e a polícia, para que possam fazer melhor trabalho, evitando que o país continue a ser usado pelos cartéis da drogas.

WH: Agora, a Guiné-Bissau é um dos poucos países que participam no trabalho da Comissão de Consolidação da Paz das Nações Unidas. Como está correndo?

JRH: Estive muito satisfeito nas minhas conversacoes recentes em Nova Iorque com a Comissão de Consolidação da Paz, com o Chefe do Gabinete de Construção da Paz e a Secretária-Geral Adjunta Judith Cheng-Hopkins; pois há uma vontade de voltar a engajar a Guiné-Bissau, assim que tivermos o novo governo de transição - espero que nos próximos dias ou semanas - a fim de auxiliar nalgumas áreas muito importantes, como continuar o que o Fundo de Consolidação da Paz fez num passado recente, no que diz respeito à reforma e modernização das Forças Armadas, o Judiciário, e algumas outras iniciativas para ajudar a consolidar, melhorar a governação democrática no país.

E eu acredito que o Fundo de Consolidação da Paz é uma das melhores e mais inovadoras iniciativas das Nações Unidas. Deve ser apoiado, para que possa dispôr de mais recursos em situações de transição, como na Guiné-Bissau, situações frágeis que não podem esperar por muito tempo pelo financiamento dos doadores para ajudar na reconstrução das instituições do Estado.

WH: As forças militares na Guiné-Bissau ao longo dos anos intervieram para assumir o governo e, em anos mais recentes, participaram no tráfico de drogas, ou pelo menos, foram acusados de participação no tráfico de drogas. Existe um plano para a reconfiguração das forças militares numa força menor, mais eficiente e confiável? Exitem oficiais a partir dos quais se pode construir uma nova força, oficiais que não foram corrompidos ou manchados pelo comportamento dos seus chefes, que podem ter participado no tráfico de drogas?

JRH: Não é, obviamente, todo o mundo no exército que está envolvido na corrupção e nas drogas. Há alguns sim, mas a grande maioria de soldados e oficiais são simplesmente pessoas que foram negligenciadas durante anos, porque o exército, como instituição, não existe. Há pessoas com uniformes, pessoas com armas, mas em condições extremamente precárias. Em tais condições, é um pouco demais esperar que haja disciplina e ética. Então, temos que reorganizar, auxiliar na reorganização de todo o exército de A a Z, o que vai levar tempo, pelo menos dois a três anos, até cinco anos. A CEDEAO, especialmente Nigéria e Senegal, está melhor posicionada para liderar este processo, e eles já começaram a pôr o dinheiro para reconstruir os quartéis e, ao mesmo tempo, ajudar com o fundo de pensão no qual o Fundo de Consolidação da Paz das Nações Unidas também estará engajado.

Há oficiais mais jovens, alguns deles altamente qualificados, outros podem ser enviados para fazer cursos na África Ocidental. Eu tive discussões com os franceses, bem como com nigerianos e senegaleses, e eles estão mais do que dispostos em receber oficiais nas suas academias. O Brasil também tem programas significativos de assistência em matéria da lei e da ordem, bem como no treinamento local da polícia. Os brasileiros têm establecido uma boa academia da polícia, tanto em termos de infra-estrutura, bem como em termos de equipamentos, mas ainda não está operacional, precisamente por causa do golpe. Então, logo que tivermos um novo governo de transição, os brasileiros estão dispostos a retomar imediatamente a sua assistência no programa de formação da polícia.

WH: Quero perguntar-lhe sobre a população do país. Ela passou por muita coisa nos 40 anos da independência da Guiné-Bissau. Ela tem motivos suficientes para não confiar em ninguém, mas há pessoas e instituições da sociedade civil, com as quais você pode restaurar o país? Existe uma disposição dentro da população para mudar a Guiné-Bissau de forma profunda como precisa de mudar?

JRH: Há muitas, muitas pessoas boas na Guiné-Bissau. Na sociedade civil, por exemplo; este país tem um número muito elevado de pessoas altamente educadas com mestrados, doutorados. Algumas delas ocupam altos cargos em organismos internacionais. Há, por exemplo, o Sr. Carlos Lopes, um dos subsecretários-gerais das Nações Unidas, encarregado da Comissão Econômica das Nações Unidas para a África, em Adis Abeba. Ele é um acadêmico superior. Havia um outro, um funcionário do Banco Mundial muito sênior da Guiné-Bissau, Sr. Paulo Gomes, e muitos outros. Eu mencionei estes dois, mas existem inúmeros advogados, procuradores, juízes e centenas de médicos Bissau-guineenses.

No entanto, eles estão na Europa - em Portugal, Bélgica, França. Então, não é que faltam pessoas altamente educadas, mas elas estão fora, por causa da incerteza política, ou por causa das condições econômico-financeiras. Se há um re-engajamento significativo por parte da comunidade internacional para reconstruir o país e as instituiçoes do Estado, não haverá dificuldades em trazer de volta algumas dessas pessoas altamente educadas. No entanto, mesmo aqui na Guiné-Bissau, há pessoas que nunca deixaram o país a despeito das dificuldades, trabalham em condições miseráveis em hospitais e noutros lugares. Elas devem ser apoiadas primeiro, apoiadas em primeiro lugar com melhores condições, com mais dignidade, de modo que se sintam reconhecidas e recompensadas pelos seus sacrifícios.

WH: Deixe-me continuar com o lado otimista e perguntar-lhe: a Guiné-Bissau é um país que reúne muitos grupos étnicos, ainda que tenha sido poupada do tipo de violência étnica que surgiu noutros países da região. Como o senhor explica isso?
JRH: Bem, eu, muitas vezes admiro, fico intrigado e, ao mesmo tempo, fico satisfeito que esta multidiversidade étnica, esses grupos bem distintos, estando eles num pequeno território, praticando diferentes religiões, dececionados, traídos por muitas décadas, e vivendo em extrema pobreza, não tenham caido na anarquia, na violência como assaltar as lojas, vandalizar propriedades privadas e estatais, etc. É realmente um povo magnífico, e deve ser ajudado e compensado por isso, ao invés de continuar a ser negligenciado.

Os Bissau-guineenses devem ensinar ao resto do mundo, como, apesar da sua pobreza, eles têm evitado as guerras civis, eles têm evitado conflitos étnico-religiosos. Eu ainda estou confuso. Então, só posso dizer que estou muito contente, porque esta é uma qualidade e um problema a menos para nós. Não há guerra civil, não há nenhuma guerra de gangues aqui, mas sim existem naturalmente boas condições sociais, políticas, para construir um futuro próspero, mais estável.

WH: O nosso convidado de hoje, no Observatório Global, foi José Ramos-Horta, Representante Especial das Nações Unidas para a Guiné-Bissau. Em nome de todos nós aqui, desejamos-lhe boa sorte na Guiné-Bissau.

JRH: Obrigado Warren, e que Deus abençoe a todos vocês.